Ao longo dos anos, nas suas incontáveis subidas e descidas, idas e vindas, o mercado imobiliário elege alguns modelos “queridinhos”, que são tratados e usados como verdadeiras panaceias a pavimentar as estradas para o paraíso da eficiência tributária e financeira.
Já passamos pelas eras dos consórcios de empresas, dos fundos imobiliários de incorporação, das vendas de fração com adesão ao contrato de construção, das “permutas financeiras” e de tantas outras ondas que, no refluxo, deixam imensos escombros de passivos e contingências para os empreendedores e investidores. Não cabe aqui detalhar os problemas e sonhos que envolveram cada um desses outros modelos, mas, sim, as semelhanças com a atual febre das SCPs imobiliárias.
As SCPs (sociedades em conta de participação) são uma forma de contratação híbrida entre um arranjo comercial e a formação de uma sociedade, existente desde os tempos áureos das navegações Venezianas. O propósito efetivo desse modelo de negócio é permitir a participação de um investidor, externo à empresa, em um determinado empreendimento junto com o empresário e sob o risco daquele empreendimento em si, esgotando-se com o sucesso ou fracasso dele. É uma ferramenta realmente muito útil e flexível, de formalização bastante simples e operacionalização objetiva, exatamente para que se viabilizem tais parcerias de modo menos burocrático que a formalização de uma sociedade empresarial. Além disso, desde que corresponda à realidade, a SCP tem a imensa vantagem de delimitar os riscos a que se expõe o investidor apenas ao negócio em si e não aos perrengues trabalhistas e fiscais, além de potenciais eficiências tributárias.
Até aí, só temos boas notícias. Mas não podemos esquecer que estamos em tempos de glorificação da mentira ou de sua vertente menos explícita, as chamadas “fake news”, e há um lado sombrio que surge no esticar excessivo do modelo, que naturalmente tem seus limites de elasticidade.
Como é comum nessas situações, há sempre um lapso de tempo entre as práticas impensadas e as materializações das suas consequências, que, na prática, são as autuações fiscais e as desconsiderações judiciais. Estamos justamente nos estertores dessa trajetória, mas o fim do filme é um pastelão trágico e conhecido.
Desde o início da crise imobiliária ou do fim da bolha anterior, como preferir, com o rareamento dos negócios e estreitamento das margens de resultados, o mercado se viu diante da necessidade de ampliar o leque das opções de modelagem para as operações e a flexibilidade das SCPs encantou o mundo imobiliário.
Realmente é um formato extremamente atraente em termos de benefícios e facilidades, mas, por óbvio, não pode ser tratado como chave-mestra e usado para todo e qualquer negócio para o qual não se enxerga uma solução natural e padronizada. Situações especiais usualmente requerem soluções customizadas e estruturações atípicas, o que é muito diferente de tentar fazer caber na roupa de SCP algo que não lhe serve, apenas com a premissa simplista de que é um instrumento flexível. A complacência tem limites, como tudo na vida.
Infelizmente tem sido usada a SCP para negócios totalmente impróprios, de modo inconsequente, em nossa opinião.
O mais simplório de todos é aquele onde a SCP substitui o contrato de venda de imóvel, tornando o objetivo do investimento não a participação na álea de um determinado empreendimento, mas única e diretamente a entrega posterior de uma única unidade preestabelecida, incluindo memorial descritivo no anexo, como cereja do bolo. Isso é comum para aquelas situações anteriores ao registro da incorporação, a fim de fugir da vedação legal, bem como para gerar uma suposta economia fiscal, já que a dissolução da SCP e entrega da unidade seriam operações não sujeitas à tributação da receita de venda imobiliária.
Há casos, inclusive, de oferecimento de SCP nos plantões de venda de empreendimentos, por parte dos corretores de imóveis, o que mostra a completa surrealidade e distopia a que chegamos nesse ponto.
Claro que há os casos de investimento real através de SCPs, onde o sócio participante efetivamente partilhará os riscos do negócio, seja em porcentual do empreendimento todo ou do resultado de algumas unidades específicas, sendo absolutamente natural e correto o uso desse formato contratual para tais situações, como sempre fez o mercado imobiliário.
Outro uso crescente é para mimetizar as situações de empréstimo, onde a SCP contém regras claras e igualmente preestabelecidas para definir a taxa de juros, prazo e as correções monetárias que o valor deverá sofrer para devolução ao investidor/mutuante, desnaturando de modo absoluto as variabilidades inerentes a um investimento de risco, que é a natureza e o propósito de uma SCP verdadeira.
A fuga do contrato verdadeiro, que seria um mútuo ou uma debênture tem motivação unicamente fiscal. Além das vantagens especiais de não contaminação dos riscos trabalhistas e fiscais da empresa, a SCP tem o adicional benefício de permitir a distribuição dos resultados ao investidor de maneira isenta de IR e CSLL, fazendo com que o retorno seja líquido, otimizando financeiramente esse cálculo. Isso, por óbvio, se tal operação realmente for tratada como uma SCP, pois não basta colocar o nome de SCP num contrato cujo conteúdo verdadeiro tenha outra(s) natureza(s).
A sereia da isenção tributária pode até ter um belo canto de início, mas a baixa da maré poderá mostrar um sinistro rabo peludo submerso.
O mais preocupante disso é a usual guinada de posturas por parte da Receita Federal, quando passa a verificar essas operações com rigor extremo e a tratar a todas como simuladas e abusivas, quando apenas parte delas estava em desconformidade. Todos acabam pagando pelos excessos e inconsequências de parte do mercado, como foi, nos idos de 1998, com os FIIs incorporadores, que quase levaram à extinção desse veículo fundamental por conta das regras restritivas que vigoraram por algum tempo em decorrência da percepção de abuso em algumas operações.
O irônico, em alguns casos, é que a desconsideração da SCP provavelmente conduzirá exatamente para a situação que mais se quer evitar ao utilizar a SCP: o tratamento como sociedade de fato, pois tal situação elimina o seu maior benefício, que é a não contaminação com os riscos trabalhistas e fiscais da operação.
As SCPs são um instrumento utilíssimo em muitas atividades, especialmente no mercado imobiliário, onde o nexo de delimitação do empreendimento a ser investido é natural, com suas vantagens reais e legalmente previstas, mas as práticas excessivamente elásticas e irresponsáveis poderão trazer consequências verdadeiramente desastrosas, num primeiro momento apenas para aqueles que inconsequentemente fazem esse uso distorcido, mas ao final para todo o mercado, caso haja um reposicionamento massivo dos fiscos e do judiciário em termos de descaracterizar ou desconsiderar indiscriminadamente o tipo contratual.
Nietzsche diz que o valor do Homem é proporcional à quantidade de Verdade que ele suporta e assim o é para qualquer contrato.
Por Alexandre Tadeu Navarro
Fonte: Legislação & Mercados